domingo, 22 de março de 2009

História do povoamento e as raízes antigas

A primeira indicação de vestígios de povoamento antigo na zona da freguesia da Póvoa foi-nos fornecida por Francisco Tavares Proença Júnior quando, num caderno de notas, indica: «Há importantes vestígios romanos em Santa Águeda propriedade do menino Gordo da Póvoa e do Francisco Costa.» Apesar de a freguesia da Póvoa de Rio de Moinhos não ter sido objecto de qualquer referência na “Carta Arqueológica do Distrito” saída a lume em 1910, a sub-região do Campo não era desconhecida para o fundador do Museu.

As margens do Ocreza, em Vale da Pereira, foi dos primeiros locais a merecer uma escavação, realizada em 1903, pelo instituidor da Arqueologia regional. Tavares Proença considerava o Campo como das sub-regiões da Beira mais interessantes a ser devidamente investigada. Sítios da História das paisagens e das permanências, dezenas de arqueosítios megalíticos, neolitícos, arquefactos calcolíticos, povoados proto-históricos, estações romanas e originais realidades de povoamento visigótico, para além de todos os elementos medievais, situados nesta parcela do nosso concelho aguardam, praticamente desde Tavares Proença, que sejam definitivamente escutados.

Em finais da década de setenta, os campos envolventes da capela de Santa Águeda seriam associados a vestígios que indiciavam estarmos perante um elemento da polimorfa paisagem rural romana. Um grupo de jovens da Póvoa, onde prontificava António Joaquim Nunes, procedeu aí a algumas recolhas de evidências de natureza arqueológica. Fragmentos de cerâmica de construção e de armazenamento romanos afloravam em todas as prospecções entretanto efectuadas na freguesia como as de Luís Raposo, o actual director do Museu Nacional de Arqueologia, e as de Joaquim Batista e José Henriques. Para além dos comuns materiais ceramológicos romanos, igualmente se recolheram e se identificaram outras tipologias de artefactos e de sítios com valor patrimonial como fragmentos de machados de pedra polida, lagares e sepulturas escavadas na rocha, entre outros. Não constituiu, então, qualquer surpresa quando, em 1987, durante os trabalhos e as movimentações do sub-solo com vista à construção da barragem de Santa Águeda, tivesse surgido à superfície um conjunto de estruturas.

Os vestígios, irremediavelmente atingidos pela maquinaria da obra, foram cientificamente interpretados, através de uma escavação de urgência dirigida pelo dr. Rogério Carvalho. A presença de paredes de taipa, de um forno de cerâmica, de áreas onde surgiram grandes dolia de armazenamento levou o investigador a considerar estar perante «um sector de apoio (pars frumentaria) a, muito provavelmente, uma ‘villa’ rústica». Hoje, e considerando a releitura das tipologias de povoamento romano propostas para a Beira Interior, talvez se esteja perante os vestígios de uma possível granja a ser devidamente contextualizada face à totalidade dos pontos de povoamento rural romanos já identificados na sub-região. Foi também nesta zona onde se desenvolveu um dos primeiros trabalhos de arqueologia preventiva desenvolvidos no concelho de Castelo Branco. Em Setembro de 1986, Francisco Henriques e João Caninas prospectariam a área a submergir pela albufeira da barragem. O mapeamento das marcas históricas da paisagem, então detectadas, apenas corrobora a necessidade de, na arqueologia dos espaços rurais, se considerar a longa duração da história dos territórios e dos sistemas agro-paisagísticos. A mutabilidade da paisagem local traduziu também todas as complementaridades rurais e urbanas, do pão à água. A construção da barragem de Santa Águeda, nessa década, constitui um significativo momento de refuncionalização e continuada construção da paisagem rural. Para além da destruição da singela capela antiga, seria construída outra com a mesma evocação noutro local, as águas da barragem ocultariam para sempre uma interessantíssima ponte de granito. Tradicionalmente tida como de origem romana, a sua reedificação e vitalidade talvez esteja mais relacionada com o secular fluxo cerealífero dos usos dos engenhos da Póvoa e das ancestrais circulações agro-pastoris entre as terras frias e o sul das Beiras. A ela voltaremos noutra ocasião, pela sua importância para a compreensão da rede de itinerários e circulações económicas ao sul da serra da Gardunha e também pela sua “história” intrínseca, como um exemplo de um património esquecido e em processo de amnésia.

Há então que voltar a interrogar o território tentando compreender a rapidez das alterações intrínsecas a que tem estado sujeito a coroa rural albicastrense. Voltar a percorrer e a sentir os locais e os caminhos, registar as aramadas e os actuais domínios privados do que outrora já foi usufruto de todos. Registar os novos telhados e sons e , principalmente, todos os sentires profundos que emanam da paisagem sagrada. É trabalho e resgate mnemónico urgente. Em 1711, frei Agostinho de Santa Maria no “Santuário Mariano”, quando confrontado com a escassez de fontes e indefinição das origens da imagem de Nossa Senhora da Encarnação que cala fundo na devoção Mariana da Póvoa comentou: «E assim de seu aparecimento, (se foy apparecida) ou de quem a mandou fazer, e collocou naquella casa, e em que tempo, não consta.». Concluindo que: « Taes são os descuydos com que se ouverão os naturais daquellas povoações, que em cousas tão grandes, só nos dão motivos de que nos possamos queixar do seu descuido.» Esperemos que a memória local nunca mais esteja sujeita a descuidos ou a subtis esquecimentos…Na complexa História das sociedades rurais que a voracidade das mudanças aceleradas sejam contrastadas com a certeza e emergência da sedentarização da investigação dos desígnios dos territórios, os do passado e os do futuro.

Pedro Miguel Salvado

Fonte: http://www.reconquista.pt/noticia.asp?idEdicao=170&id=12368&idSeccao=1703&Action=noticia


1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei muito deste texto. É de uma pessoa acima de tudo honesta e amiga da verdade histórica.