quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Cala-te que podemos ir presos!

Quando, nos inícios dos anos 60, Benvinda Matos Pinto partiu para França, deixou para trás uma vida sem horizontes mas perdeu a vivência das muitas tradições que anualmente revigoravam e davam sentido ao viver colectivo da Póvoa.

Faz parte da dura faina do campo, a existência de alguns períodos de distracção para recuperar forças e esquecer as agruras da vida. Sempre assim foi ao longo dos tempos e assim continuará a ser.

Na Póvoa, desde tempos imemoriais que existem algumas festas religiosas normalmente seguidas das respectivas festas populares.

A ligação das festas religiosas aos divertimentos profanos nem sempre foi pacífica. Tempos houve em que a celebração religiosa era perfeitamente integrada nos divertimentos populares. Com o evoluir dos tempos, as autoridades religiosas começaram a separar uma coisa da outra e esta separação deu origem a muitas confusões e desentendimentos. Esses tempos passaram e hoje, podemos dizer que as festas já não são o que eram, apesar de continuarem a realizar-se.

A festa principal foi sempre a da Senhora da Encarnação. Tinha e tem lugar na Páscoa. Começava com as Alvíssaras. As pessoas deslocavam-se de madrugada à capela para cumprimentar a Senhora pela ressurreição do Filho. Havia missa, sermão e procissão à volta da capela. De tarde comiam-se as merendas debaixo dos sobreiros e a música tocava. À tarde regressava-se à povoação e o rancho era lindo de ver: as mulheres antigas tocavam o adufe, o povo cantava e o arraial dava continuidade, pela noite dentro, às diversões populares.

O mesmo ambiente festivo envolvia a romaria de Santa Águeda cuja capela primitiva foi alagada pela barragem.

No Natal era imprescindível o madeiro aceso, em frente à Igreja Matriz. Da organização do madeiro encarregavam-se os rapazes solteiros recolhendo e transportando alguns troncos fortes de sobreiro velho que os mais abastados ofereciam. As crianças também participavam: recolhiam as silvas das vedações velhas das hortas para atear a fogueira. Esta ardia por largos dias e noites, até se consumir toda a lenha.

No Verão também havia festa, a 15 de Agosto. A Senhora da Encarnação vinha à povoação trazida pelos homens no seu andor. Havia missa, procissão e à noite arraial. Ao princípio, na Praça e mais tarde no largo da Deveza. Esta festa congregou, durante os picos altos da emigração, todos os emigrantes de férias, contribuindo assim para os re-ligar aos seus lugares e famílias de origem.

Escusado será dizer que no Carnaval também havia alguns divertimentos. Castigavam-se com censura pública algumas figuras que sobressaíam no povo pelos pecados mais comuns: uma velhota ou velhote que bebiam uns copitos a mais ou um ou outro caso de suspeitas de amores fora das normas.

Alguém reunia a criançada, cada um com seu chocalho e eram as célebres “chocalhadas” públicas às portas do criticado.

Às vezes apareciam uns pequenos grupos de saltimbancos vindos não se sabe de onde, com o intuito de recolher uns tostões ou qualquer coisa que matasse a fome. Com uma caixa de música, uma corneta, um cantor e um habilidoso, improvisava-se um espectáculo. As quadras cantadas eram quadras populares e, por vezes, o sarcasmo e a ironia faziam a sua graça. Lembro-me de ter ouvido, um dia, os saltimbancos cantarem:

Santa Comba por destino/ Fica mesmo em Portugal/ Á beira da Oliveira/ Oliveira do Hospital.

Oliveira do Hospital/ Que os doentes não ilude/ Que afinal é Oliveira/ Que nos trata da saúde.

Eu era uma criança e lembro-me de ter ido para casa contar à minha mãe o que ouvira dos palhaços. Logo ela me disse:

-Cala-te que isso é contra o Governo e podemos ir presos.

Como se vê a ironia era fina.

Da saúde ninguém tratava e as epidemias de febre tifóide e outras, rondavam frequentemente as famílias. Tratar da saúde tinha um segundo sentido, como facilmente se pode imaginar.

Na próxima crónica daremos uma ideia do que foi, poucos anos antes de começar a atracção pela Europa, o sonho de vida melhor experimentado com a exploração do minério durante a Guerra.

José Antunes Leitão


Fonte: http://www.reconquista.pt/noticia.asp?idEdicao=210&id=17980&idSeccao=2233&Action=noticia

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